quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia...




A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor.

E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora, logo se acostuma e não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo à luz.

E, à medida que se acostuma se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.

A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo.

A comer sanduíche porque não dá para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.

E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.

E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita.

E a lutar para ganhar com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer fila para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E, a saber, que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes.

A abrir as revistas e ler artigos.

A ligar a televisão e assistir comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam à luz natural.

Às bactérias de água potável.

À contaminação da água do mar.

À morte lenta dos rios.

Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando ñ perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.


Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.

A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele.

Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colassanti

2 comentários:

Márcio Ahimsa disse...

que bela exposição de tudo que a gente se acostuma em nosso célere viver...

Gostei Cris.

Beijo.

...EU VOU GRITAR PRA TODO MUNDO OUVIR... disse...

Cris Rubi!

Esta crônica é tudo aquilo com que a gente não deveria se acostumar!!!

Excelente!

Beijos!

Sonia Regina.